Não queria ir. O céu brusco e as previsões
garantiam que um temporal estava prestes a despencar. Pesou todos os fatores e resolveu
arrear a égua e partir assim mesmo para o passeio. O ritual não era simples.
Tratava-se de pegar o animal num pasto íngreme, alqueire e meio, sem muitos
lugares onde pudesse encantoar o bicho e jogar o cabresto. Deu sorte. Ela estava pastando encostada na cerca e não resistiu quando sentiu o peso da corda
no pescoço. Passou a cabeçada completa, para garantir que não escapasse e
desceu até a baia. O freio pendurado no esteio da porteira, a sela encerada e a
bota esperavam. Era tudo herança paterna, surrada, consertadas muitas vezes. Recentemente
havia trocado as barrigueiras e reforçado os loros. A égua era mansa e não
oferecia risco de estourar o arreamento, mas nunca se sabe o que vai na cabeça
de um bicho desses, e nem os imprevistos que podem surgir pelo caminho. Lembrou
da vez que a buzina de um carro espantou o cavalo, a rédea quebrou e, depois de
um galope de mais de três quilômetros, estancou de repente, jogando o cavaleiro
por cima do pescoço no asfalto áspero.
As marcas ainda hoje no braço e perna eram um registro para não esquecer o que
o avô sempre dizia: “nunca confie em cavalo”.
Apertou tudo com esmero e saiu a passo.
Marchadeira, a égua ia no toc-toc ritmado, alternando as passadas com elegância
e conforto. Havia colocado um lanche e chocolate no alforje, suspeitando que o
passeio pudesse demorar mais que o previsto e, por garantia, amarrou a capa no
lombo, para quando iniciasse a chuva.
Viu de longe o aglomerado. Além dos cavalos de
sela havia aqueles trotadores, puxando charretes e carroças de todos os
estilos. Cavaleiro com roupa de cowboy americano, com bombacha de gaúcho,
chapelão de feltro ou de palha, botina ou bota, atrevido ou recarretado. Havia
peão de todo estilo, e para todos os gostos. Meio tímido, foi se achegando.
Tinha receio de que acontecesse algo errado, a égua espantada podia dar um
pinote descontrolado, trombar com uma cerca, escoicear algum outro animal...
Olhou para cima e viu o temporal armando. O
vento ameaçava arrancar a chapelada das cabeças, e garantia a chuva para dali a
pouco. Foi quando, no meio da poeira, ela se aproximou:
- Moço, o senhor não pode ficar parado aí.
Está atrapalhando a entrada.
Não entendeu. Tinha feito questão de parar
justamente em um lugar onde não incomodasse, pra nem ser notado...
- O senhor não é daqui, não é mesmo?
Pensou em contar toda a história, afinal era
mais dali do que qualquer um dos participantes da romaria, mas percebeu que não
valia a pena. Na verdade sentiu-se desajeitado, deslocado, como se aquela roupa
que vestia fosse mais uma fantasia de que um traje de cavaleiro. Limitou-se a
pedir desculpas e se afastou da aglomeração.
Sentia o respirar da égua debaixo das pernas,
ritmado, lento. O calor subia do corpo do animal, compensando o frio do pasto
seco. Dois meses que havia deixado o antigo emprego, a família, as obrigações,
e se refugiado na antiga casa que pertenceu aos avós. Ninguém entendeu quando
largou a agência que ele mesmo contruira e um casamento de mais de 20 anos para
"reencontrar o eixo", numa cidade perdida no interior mineiro. Agora
estava ali, imerso num quotidiano que lhe trazia lembranças do que apenas
vivera quando criança, ou em sonhos.
- O senhor tem a inscrição pra acompanhar a
romaria?
Virou-se e viu um velho magro, barba branca
por fazer, prancheta na mão. Não tinha.
- O pagamento é pra ajudar a igreja.
Preencheu a ficha calado e devolveu a
prancheta. O velho conferiu, repetindo duas vezes o sobrenome. Sim, era da
família que há mais de duzentos anos fincou-se na região, dona de todas as terras
que vieram a dar origem àquela cidade, com os nomes dos bisavós, avós, tios,
nas ruas, praças, bairros.
O homem ameaçou puxar prosa, mas ele agradeceu
e tocou um pouco adiante. Certas histórias é melhor não fuçar, ainda mais
considerando que ele estava "fora do eixo", depois de décadas revendo
o lugar onde tudo começou.
O alto falante anunciou que a romaria ia sair.
A fila, espontânea, começou a serpentear pela estrada. Podia ouvir a cantoria
lá na frente. Certas coisas é melhor não
fuçar, acaba machucando. Melhor deixar como está. Virou a égua no sentido contrário
e soltou a rédea. Convinha acelerar o passo para fugir da chuva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário